Descaracterizar-se é uma obra que não vai acabar. A roupa sobre a pele do meu corpo dobrou-se nesta experiência. Talvez a dobra fique invisível, e não posso dizer que irá virar um vinco, ou uma ruga marcada por uma velha expressão. Mas os momentos que vivi no audiotour proposto pela artista durante a sua exposição perdura pelos sons, imagens, toque, gesto e movimentos estomacais que emergiram em mim.
É possível a roupa de alguém narrar a história de seu dono?
Acompanhei a performance duracional da Bia, às vezes um pouco mais de perto, às vezes um pouco mais de longe. E é dessa forma que ela se propõe a ocupar o espaço da Oficina Cultural Alfredo Volpi em Itaquera. Ao ver a linha do tempo desenhada no mural, de longe, parece que cada palavra é uma curva do seu estômago. Ao chegar mais perto, observamos as curvas das mudanças de expressão corporal registradas a cada semana. Vestir-se de outra pessoa durante 7 dias, é acompanhar as rugas marcadas pelo padrão de movimento dos seus corpos. Não é o padrão em si, pois isto seria impossível, mas é deixar que os vincos das dobras adentrem as rugas de sua pele, desestabilizando sua maneira de se mover.
Ao me aproximar, perco a noção de forma no decorrer do tempo da narração feita nas paredes.
Me pergunto por quais bocas do corpo da artista é narrada esta experiência tão visceral?
DESCARACTERIZAR-SE, de Beatriz Cruz
Fotos: ierê p.
A cada semana ela experimentou usar o guarda-roupa de uma pessoa diferente, aderindo ainda às instruções do uso pessoal que cada dono das roupas fazem costumeiramente. Durou um ano. Um ano sem que ela usasse suas próprias roupas, e atravessada por outras subjetividades do vestir. As instruções que vinham das pessoas se compunham com as subjetividades dela. Assim, Bia articulou novos olhares.
Uma radicalidade para desviar-se.
Ou desandar, como ela dá nome ao projeto que enreda seu gesto de dobrar-se no mundo e no outro, através de sua arte da performance.
Ao dobrar o mundo epidérmico do outro em si mesma pelas vestes, ela se permite ser atravessada pela multiplicidade singular que é cada pessoa. Enredou um universo verbal entre tecidos e rugas, e gerou discussões sobre identidade, gênero, moda, violência cognitiva, ou seja, política e vida social. É uma obra que não consegue ficar ilesa as questões do controle que o mercado econômico tem sobre nossos corpos.
Como escolhemos uma nova roupa para o nosso repertório cotidiano? Quem a costurou? O dono da terra onde foi plantado aquele algodão é a mesma pessoa que o colheu? Como as roupas chegam até a vitrine das lojas? Por que os manequins são todos iguais se um corpo é tão diferente do outro?
Toda imagem é um mapa complexo daquilo que a gerou. Narram a história de um acontecimento, por mais simples que ela seja.

Sinto ser potente uma performance que consiga abrir e fechar feridas. As marcas que ficam vão traçando um caminho peculiar na geografia do corpo de quem as faz, gerando subjetividades monstras, e singulares.

Descaracterizar-se é
reflexo e refluxo,
pele e palavra.

Lá atrás, quando tudo começou, ver a Bia vestindo as roupas de outras pessoas me desestabilizou. Gerou tantas questões de gênero em mim, que atravessou meu caminho pra sempre. Uma ruga potente, uma rede de ruas, um mapa de afetos, um processo sem fim.

Deixo aqui a aventura de ter acompanhado este trabalho. Quando a experiência do outro é compartilhada, os seus rastros deixam pistas para outras vidas, outros monstros por vir.

ierê papá.